quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Homofobia é fator de exclusão escolar: a luta por políticas de combate à homofobia nas escolas


Do começo da minha vida até o momento em que me mudei para Macapá, eu achava que era um garotinho normal, como qualquer outro. Nos meus primeiros anos de colégio, mais precisamente entre o pré-escolar e a primeira série, não havia distinção no tratamento que meus colegas de classe me davam. É claro que as professoras me olhavam de modo estranho, como se estivessem confusas, como se soubessem de algo que eu não sabia ainda, uma espécie de compaixão velada, talvez? Nunca soube ao certo o que aqueles olhares queriam dizer.

As coisas começaram a mudar para mim quando comecei a frequentar a primeira série do ensino fundamental. Eu tinha apenas sete anos de idade e não fazia ideia do porquê os meninos mais velhos riam de mim e me apontavam nos corredores, só sabia que não gostava nada daquilo. E o problema não estava só ali, no âmbito do ensino regular, mas também nos lugares onde eu praticava minhas atividades extracurriculares, como por exemplo, no curso de inglês. Ali a coisa era muito mais pesada, já que eu tinha de interagir com garotos muito mais velhos que eu, adolescente inclusive, entre 15 e 16 anos.

Nesta época devia ter oito anos, mas como era criança, não estava preparado para ouvir aquele tipo de provocações, insinuações e xingamentos que estavam além do conhecimento de uma criança de oito anos. Não lembro de muita coisa por ser jovem demais, mas lembro muito bem da sensação que aquilo me fazia sentir. Me fazia sentir vergonha de mim mesmo, sentir vergonha de olhar as pessoas nos olhos, vergonha de falar com as pessoas, de interagir com outros seres humanos. A sensação que ficou era a de que todos em qualquer lugar iriam me tratar daquela forma, a semente do medo foi plantada ali. E isso deixou suas sequelas, efeitos que eu sinto até hoje.

Não larguei o curso de inglês porque precisava estudar matemática, como fiz as pessoas acreditarem. Larguei porque eu já não aguentava ser tratado daquela forma. E o pior de tudo: ver que professores, funcionários e serventes observavam e não faziam nada contra os agressores. Os adultos sabiam, os adultos viam. E eles não faziam nada. Lembro vagamente da famosa noite do pijama que aquele curso particular de inglês realizava. Aquela foi a pior noite da minha vida. Eu fui porque achava que seria “divertido”. Puseram-me com garotos muito mais velhos que eu, que gritavam coisas horríveis nos meus ouvidos e me arremedavam cruelmente quando eu tentava me

comunicar com eles. Fui o saco de pancadas de um bando de marmanjos durante uma noite inteira, não sei nem como consegui dormir.

Mas aquilo era só o começo de uma longa jornada. Os problemas só agravaram quando eu mudei de escola e subi para o ensino fundamental II. Eu não tinha coragem pra entrar numa briga, não podia fazer nada. Os garotos da minha sala tinham ódio de mim. E quando digo ódio é no sentido mais visceral da palavra, eles não queriam me provocar, eles não queriam apenas me “zoar”, eles queriam me magoar, me deixar pra baixo. E tentaram incansavelmente ao longo dos oito anos que passei naquela escola.

Não sofri isso unicamente da parte de garotos. Acreditem, garotas homofóbicas existem. Fui perseguido durante um longo período por um grupo de alunas do Ensino Médio que pareciam ser especialistas em imitar os meus trejeitos assim que eu cruzava o campo de visão delas.

Até empurrado da escada eu fui, fiquei mancando durante alguns dias, nunca descobriram quem havia me empurrado. Esse foi o mais próximo de violência física que os agressores chegaram.

...Hoje tudo são memórias. Lembrar disso é como tentar relembrar o terrível pesadelo que tive noite passada, ou recontar o enredo de um filme recentemente assistido.

Não posso dizer que isso me tornou uma pessoa melhor. O bullying não vai te transformar em alguém melhor, passar por essa experiência não é bom e não deixa sequelas boas em ninguém. Você pode fingir ser forte, fazer as pessoas acreditarem que você é forte, mas dentro de ti, sabe que não é bem assim. Mesmo hoje, namorando, e ouvindo que sou lindo todos os dias, ainda me olho no espelho e me sinto inferior, insuficiente, feio.

Ainda fico nervoso quando entro num lugar e todos os olhares caem exatamente sobre mim como faróis. Ainda tremo por dentro quando um estranho me olha demais na rua, ou quando tenho que dirigir a palavra a desconhecidos para tirar uma dúvida, para pedir uma informação. Grupos de homens reunidos então? Me apavoram ao extremo. Passar na frente de colégios? Nem pensar, adolescentes me deixam nervoso, me dão um frio tremendo na barriga. Às vezes, à noite no escuro, ou quando saio do banho e encaro meu rosto lavado, meu cabelo molhado, ainda choro. Choro bem baixinho, com o rosto na toalha, enfiado entre as mãos ou no travesseiro. Eu realmente queria que as coisas fossem diferentes para mim. Às vezes eu tenho dó de mim mesmo.

Mas é tarde demais e muita coisa já aconteceu. Daenerys Targaryen uma vez disse “se olhar para trás, estarei perdida”. É assim que eu procuro seguir em frente. Sem olhar para trás.

Antonio Fernandes, 20 anos,
em entrevista ao repórter Joaquim Gatz


“(...) Os garotos da minha sala tinham ódio de mim. E quando digo ódio é no sentido mais visceral da palavra, eles não queriam me provocar, eles não queriam apenas me “zoar”, eles queriam me magoar, me magoar mesmo, me deixar pra baixo (...)”.

Esse caso de bullying homofóbico, vivido pelo escritor amapaense Antônio Fernandes (Box 1), hoje com 20 anos, durante o ensino fundamental, poderia ser um caso isolado, mas Antônio é mais uma vítima entre os inúmeros casos de agressões a homossexuais ocorridos dentro das escolas brasileiras.

Bullying é um termo da língua inglesa que se refere a todas as formas de atitudes agressivas, verbais ou físicas, praticados por uma pessoa ou grupos, intimidando outra pessoa dentro de uma relação desigual de forças ou poder. Homofobia significa aversão, repugnância, ódio ou preconceito que algumas pessoas têm contra a comunidade LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais).

Segundo dados da pesquisa “Estudos Sobre Ações Discriminatórias no Âmbito Escolar”, da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) publicado em maio de 2009, 26,6% dos 15.087 mil alunos entrevistados em 501 escolas de todo o Brasil afirmaram não aceitar um homossexual no ambiente escolar, seguidos de funcionários (20,5%), pais, mães e responsáveis (20,3%), diretores (10,9%) e professores (10,6%).

O estudo apontou que todos os grupos ouvidos sabem que alunos já foram humilhados por sua orientação sexual e em alguns casos, presenciaram a agressão. O grupo que mais teve conhecimento de agressão física a estudantes homossexuais foi o de alunos, com 18,7%, seguido dos diretores (16%), professores (10,3%), funcionários (10%) e pais, mães e responsáveis (7.9%)


Realidade Amapaense

Diversas ações foram desenvolvidas pelo Ministério da Educação (MEC) na área de gênero e diversidade sexual e apresentadas em audiências públicas na Câmara dos Deputados em Brasília. A Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) é a única instituição educacional no Estado a adotar uma das ações desenvolvidas pelo MEC, que permite o uso de nomes sociais de travestis e transexuais nos registros da universidade.

Apesar de algumas instituições de ensino em Macapá apresentarem projetos que visem o combate ao bullying dentro das escolas, nenhum desses projetos é de combate específico ao bullying homofóbico. Magda Ripke Donim, diretora pedagógica do Colégio Argos, da rede privada

de ensino, confirma esse fato ao se referir a um dos projetos da escola particular: “Nós trabalhamos com a “Semana Diga Não Ao Bullying” que não é direcionada ao bullying homofóbico”.

Marilda Costa, diretora da Escola Estadual Dr. Alexandre Vaz Tavares (A.V.T.) afirma nunca ter havido nenhum caso de agressão física motivada por homofobia no colégio. “Nós nunca tivemos problemas maiores, como agressões e violência. Infelizmente, num universo de mil e quinhentos alunos, tem aqueles casos isolados de apelidos e piadas, mas não que isso seja uma pratica rotineira”, afirma a diretora

O estudo da FIPE publicou dados que indicam que 60% dos diretores não reconhecem a existência de humilhações aos homossexuais dentro das escolas.

O estudante L.O.P, de 17 anos, que preferiu se manter anônimo, e está no segundo ano do Ensino Médio na escola AVT, contradiz a diretora, e afirma ter sido vítima de homofobia dentro do colégio, durante todo o ano passado. Segundo L.O.P., ele era agredido com insinuações de que tinha H.I.V por ser homossexual, o opressor era um outro colega de classe. L.O.P. diz ter procurado a equipe pedagógica da escola, entretanto, ela não tomou atitude alguma contra o agressor. A equipe disse que iria resolver o ocorrido, chamando os pais de ambos alunos, mas não o fez. “No último dia de aula eu fui à Supervisão, aí falei tudo o que ele tava falando, então nos mandaram parar com aquilo senão iriam nos transferir de escola”.

André Lopes, atual presidente da Federação Amapaense de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais (FALGBT), diz que com base em dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) - que inclui todos os níveis de homofobia: desde agressão moral à agressão física -, o Amapá é o estado que apresenta o menor índice de casos de agressão à homossexuais. A justificativa é a falta de denúncias dos agredidos. Somada às baixas queixas de agressões ao “disque 100” (que serve para a SDH/PR como base para a construção de dados e ações que desenvolvam políticas públicas que combatam a homofobia), está a falta de registro dos casos de bullying homofóbico no ambiente escolar.

Para o presidente, a ausência de iniciativas para acabar com a homofobia nas instituições de ensino, e a falta de denúncias ao “disque 100” acabam por tornar essa forma de exclusão como algo comum e aceitável. “Para a Secretaria, o Amapá não é um estado homofóbico, mas a gente tem homofobia. E é homofobia institucionalizada! O que é pior, porque quando está institucionalizada, isso se torna comum. Chamar um coleguinha de “bichinha”, passa a ser totalmente normal dentro de um estabelecimento de ensino”, diz.

A Secretaria de Estado da Educação (SEED) reconhece a existência desse problema nas escolas. De acordo com Rosinete dos Santos Rodrigues, chefe da Coordenadoria de Educação Básica e Educação Profissional da SEED, “não dá pra tentar ‘tapar o Sol com a peneira’. As escolas são caldeirões vivos. As coisas acontecem lá dentro e a gente não pode jogar um pano em cima e

dizer que isso não tá acontecendo. Acontece, sim”, diz a coordenadora que reconhece que algo precisa ser feito.


Projeto “Escola Sem Homofobia”

O projeto de combate à homofobia escolar de maior repercussão nacional foi o “Escola Sem Homofobia”. O material do programa se destinava à formação dos professores em geral, dando a eles subsídios para trabalharem a questão da homossexualidade e o combate ao bullying homofóbico nas escolas de ensino médio. O projeto consistia em um conjunto de instrumentos didático-pedagógicos que visavam à desconstrução de imagens preconceituosas sobre lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, e para o convívio democrático com a diferença. O material foi vetado pela presidente Dilma Rousseff em 2011. A estimativa é de que o custo desse material, retido atualmente no Ministério da Educação, foi de aproximadamente R$1,8 milhões.

Andre Lopes questiona a divulgação que o projeto teve na mídia. De acordo com ele, o nome “Kit Gay” deu ao programa uma imagem errada. “Preferimos não utilizar o termo “Kit Gay” porque a gente não quer ensinar ninguém a ser gay.” Segundo ele, utilizar essa expressão pode causar a impressão que o objetivo do projeto é educar as pessoas para que elas se tornem homossexuais.

Segundo Jean Wyllys, Deputado Federal (PSOL/RJ), em entrevista exclusiva, o veto ocorreu porque forças políticas fundamentalistas - termo usado pelo deputado para se referir à parte da bancada evangélica da Câmara - se organizaram para pressionar a Presidente da República. A bancada divulgou para a mídia que o kit anti-homofobia utilizava material de uma ação do Ministério da Saúde relacionada aos usuários de drogas injetáveis.

O deputado lembra que apesar da frente parlamentar LGBT ter ido à tribuna tentar denunciar essa manobra da bancada religiosa, não obtiveram sucesso quanto a aprovação do programa. “Há uma força muito grande contra políticas que favoreçam os direitos de LGBT’s”.

Jean conta que a justificativa da bancada para vetar o projeto, foi condenar o material por ele ser de combate ao bullying especificamente homofóbico, e não um material que combatesse a discriminação de uma forma geral. “Houve uma pesquisa que apontou que a prática da violência homofóbica e do bullying homofóbico é muito mais frequente nas escolas que as outras práticas. As outras práticas já são contempladas, digamos assim, e essa não. Essa é silenciada. Então, essa política tinha o objetivo de atingir diretamente o bullying homofóbico”, respondeu o parlamentar.

Para Jean Wyllys, a educação tem o compromisso de formar cidadãos humanistas e respeitosos da diversidade. “Dizer que esse não é papel da escola é um equívoco de pessoas que vão para o Congresso Nacional fazer projetos de sua religião e não para agir seguindo os preceitos da Constituição”, critica.


Iniciativas em Andamento

De acordo com André Lopes, a Federação Amapaense de LGBT’s, junto com a Secretaria de Educação e a Secretaria de Inclusão e Mobilização Social, planeja fazer no segundo semestre de 2013, capacitação para professores, pedagogos e todo o corpo técnico de escolas, juntamente com Ministério da Saúde. “Não é pra capacitar e tratar o homossexual como um diferente, mas pra entender uma particularidade, porque o professor não sabe lidar com o homossexual que sofre homofobia dentro da escola”, explica Andre.

Nessa capacitação, dúvidas dos professores de como ele deve trabalhar com um aluno que venha sofrer homofobia serão repassadas. Com a capacitação, as equipes pedagógicas serão orientadas a encaminhar a vítima de bullying homofóbico a duas redes de proteção que já existem, o Centro de Referência e Atendimento à Mulher (CRAM) e o Centro de Atendimento à Mulher e à Família (CAMUF). Segundo o presidente, as duas redes servem de proteção aos direitos humanos. Para Andre, a iniciativa é importante porque muitas escolas não estão preparadas para receber um aluno homossexual.

Com políticas capazes de oferecer uma educação inclusiva, diferente da encontrada atualmente nas escolas por todo o Brasil, histórias como a do escritor Antônio Fernandes e do estudante L.O.P. não acontecerão.

Nem todas as vítimas dessa agressão superam essa forma de exclusão no ambiente escolar. Caio Amaral, aluno de 17 anos, vítima de bullying homofóbico numa escola no Rio de Janeiro, foi

uma das exceções e relata: “Embora já tenha pensado em coisas como sair da escola ou me mudar durante esse período, fico feliz que não tenha feito nada, e de cabeça erguida tenha conseguido passar por tudo”.


Joaquim Gatz
Acadêmico do Curso de Jornalismo UNIFAP - 2012

(Reportagem vencedora do Prêmio Expocom Regional Norte, na modalidade Jornal Impresso)

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